Mais mulheres na alfabetização
Por António Capitão

As mulheres lideram as estatísticas do Programa de Alfabetização e Aceleração Escolar no Uíge, o que, embora seja uma tendência mundial, acaba por revelar, no destapar do longo véu das suas vidas, a capacidade de sacrifício e a vontade férrea de se superarem.
Marcelina Lucas, 56 anos, tem oito filhos e vive na Zona 1 do bairro Papelão. Foi à escola pela primeira vez em 1967 para frequentar a iniciação e no ano seguinte fez a 1ª classe, mas, devido aos maus-tratos e à falta de vontade do padrasto em formar os filhos que não lhe pertenciam, ela e outros seis irmãos tiveram de abandonar os estudos.
O irmão mais velho foi obrigado a fugir de casa e procurar os parentes do pai, para poder continuar a estudar. Hoje, feito engenheiro agrário, é o suporte da família e exemplo para muitos.
Embora tenham passado 41 anos sem se sentar a uma carteira e voltar a pegar num lápis para escrever letras e algarismos, Marcelina manteve a esperança de recuperar o tempo perdido.
Há três anos, matriculou-se no centro de alfabetização da Igreja Católica do seu bairro. Este ano lectivo conclui os conteúdos do plano curricular do primeiro módulo, que equivale à 1ª e 2ª classes, e diz que já aprendeu muita coisa, como escrever o nome e ler, embora ainda a soletrar. Agora, além de ler os jornais, consegue interpretar melhor o que se diz na rádio e na televisão.
Depois das aulas, cuida da venda de produtos diversos na banca que tem à porta de casa. Com esse negócio precário ajuda o marido nas despesas da família.
Sorri orgulhosa quando afirma que já não faz parte do ainda grande número de angolanos que não sabem ler nem escrever. Lê tudo o que lhe aparece pela frente, sejam cartazes ou panfletos publicitários, revistas, jornais, livros, legendas de filmes ou notas de rodapé dos noticiários da televisão. Escrever já faz parte do seu dia-a-dia na escola.
Em 2012, chegou a ser indicada para assumir a tesouraria do grupo coral de que é membro na igreja, mas renunciou à função por não saber de letras nem números. Hoje, diz estar pronta para assumir a responsabilidade e fazer uma gestão eficiente dos fundos do grupo.
“Sem saber ler nem escrever, como ia estar em condições de fazer a lista dos contribuintes e contabilizar as contribuições e ofertas para o grupo? Agora estou minimamente preparada para assumir o cargo para o bem da igreja”, garante.
Em pequena, Lina Pascoal não se importava com a escola e preferia vender nos mercados, onde a vida livre e o dinheiro eram mais atractivos que os cadernos e lápis. Ainda na adolescência, começou a vender banana, ginguba e bolinhos na praça do bairro Dunga, onde ainda vive.
Agora, aos 27 anos e com cinco filhos, está a terminar o primeiro módulo, que corresponde à 4ª classe, e só vai ao mercado vender tomate e batata rena no período da tarde, depois das aulas.
“Os negócios estavam acima de todos os interesses. Estava convencida que, como já tinha marido e dinheiro para as vendas, nada mais me faltava. Hoje, a situação mudou. Prefiro ficar na escola do que estar no mercado. O pouco que consigo vender ao final do dia é suficiente para levar comida para casa, uma vez que o meu marido se encarrega dos outros aspectos”, disse.
“Quando cheguei aqui à escola, em 2012, nem o meu nome sabia escrever, porque não me interessava pelos estudos. Para mim, o importante era nunca me faltar pelo menos um kwanza no bolso. A certa altura, comecei a ter vergonha de mim, sobretudo quando as minhas amigas e colegas da praça se despediam para ir à escola. Decidi estudar, mesmo com a timidez por estar a começar nesta idade”, contou.
Lina Pascoal está determinada a dar continuidade aos estudos e sonha ser professora ou enfermeira, para poder ensinar mais pessoas a ler, escrever e contribuir para a erradicação do analfabetismo em Angola, ou salvar vidas.
O abc pela primeira vez
“Antes, nunca tinha entrado numa escola. Não sabia escrever sequer o meu nome e para contar usava os dedos”. As palavras de Maria Elisa podiam ser de profunda tristeza, não fosse o brilho dos seus olhos porque, “graças a Deus e fruto de muito empenho, consigo escrever o meu nome e de todos os meus familiares, mesmo que com alguns erros”.
Hoje, a mulher de 42 anos e três filhos não se engana ao anotar as contas dos devedores, pois a maioria dos clientes das roupas de cama que vende compra a crédito, ou de início apenas paga uma parte do valor.
Moradora no bairro Mbemba Ngango, Maria Elisa levanta-se por norma às 4h00. Arruma a casa, prepara o pequeno-almoço para a família e vai à escola.
“Peço apenas saúde e muita tranquilidade para poder continuar os estudos. Este é o segundo ano que estou na alfabetização e já vejo uma luz ao fundo do túnel a indicar-me o caminho”, disse. Se para Lina Pascoal pesou o facto de ver as colegas do mercado conseguirem empregos, inclusive na Função Pública, por terem conseguido tempo para estudar, Maria Elisa teve o empurrão da família para o fazer.
Incentivo familiar e de amigos
“As minhas amigas sempre me aconselharam a estudar e diziam que tinham na formação académica o sonho de um futuro melhor”, conta Lina, que nunca levou em devida conta esses conselhos, devido à ilusão do dinheiro contado ao fim de cada dia de venda.
Mas viu as amigas ultrapassarem obstáculos que, para ela, eram até então intransponíveis. “A mudança que elas tiveram nas suas vidas depois de concluírem o Ensino Médio e os conselhos do meu marido incentivaram-me a matricular-me nas aulas de alfabetização. Hoje, começo também a perspectivar melhores condições de vida nos próximos anos”, sublinhou.
Maria Elisa destaca o comportamento do marido, que nunca a descriminou por ser analfabeta. Por falta de alguém para cuidar das crianças, viu o tempo passar sem se poder inscrever num centro de alfabetização. Agora, os filhos cresceram.
“Ele (marido) foi sempre a primeira pessoa a encorajar-me a estudar. Os miúdos estão todos crescidos e já trabalham, por isso ganhei folga para vir à escola”, diz a agora aluna.
Episódio marcante foi quando se viu sem dinheiro para comprar o material e a roupa com que queria apresentar-se na escola. A filha disse-lhe para usar o que o pai tinha deixado para o cartão de recarga da parabólica. A própria filha repôs o dinheiro dias depois, mas as telenovelas perdidas reverteram a favor do saber. O marido, que as tinha posto “de castigo” por terem gasto o que tinha deixado, soube então que tinha sido por uma boa causa.
Mulheres lideram estatísticas
No Uíge, estão inseridos no Programa de Alfabetização e Aceleração Escolar (PAAE) 40.210 alunos. O chefe de secção de ensino de adultos da Direcção Provincial da Educação, Albertino dos Santos, disse que, deste número, 31.311 são mulheres com idades a partir dos 12 anos, o que corresponde a 78 por cento.
Para garantir o processo de alfabetização, existem na província 597 alfabetizadores, 168 dos quais são do sexo feminino, distribuídos pelos municípios, comunas, aldeias e bairros.
Na segunda fase, para o Módulo 1, foram inscritos 19.797 alunos, dos quais 4.082 do sexo masculino, correspondendo a 21 por cento, e 15.715 do sexo feminino, 79 por cento.
No módulo 2, inscreveram-se 3.571 alunos, dos quais 1.606 do sexo masculino (45 por cento) e 1.965 do sexo feminino (55 por cento). No módulo 3 estão 1.763 alunos, 938 do sexo masculino (53 por cento) e 825 do sexo feminino (47 por cento).
Os dados revelam um número superior de mulheres a frequentar as aulas de alfabetização, o que acontece na generalidade dos países, mas esta percentagem inverte-se no terceiro módulo, razão que tanto pode estar ligada ao facto de os homens inscritos terem já alguma educação, mas também reflectir uma maior desistência do sexo feminino, por razões a apurar.
Via Jornal de Angola