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Portal da Damba e da História do Kongo

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Página de informação geral do Município da Damba e da história do Kongo


Significados do antonianismo no Reino do Kongo

Publicado por Muana Damba activado 18 Abril 2013, 02:38am

Etiquetas: #História do Reino do Kongo

 

Por Ronaldo de Vainfas  e Marina de Mello e Sousa

 

 

O movimento dos antonianos tem sido tema dos mais polêmicos na historiografia acerca do Congo, especialmente a partir dos anos 1960, debate estimulado pelo processo de descolonização da África. O antonianismo foi, de um lado, condenado por uma certa historiografia oficial portuguesa como heresia
obsecena e diabólica, historiografia que muito espelhava o conservadorismo da Igreja portuguesa e o próprio colonialismo dos tempos de Salazar.


No pólo oposto, o antonianismo foi visto como uma espécie de movimento precursor das guerras de independência africanas levadas a cabo nos anos 60, posição obviamente extemporânea porque motivada mais pela bandeira da descolonização do que pela contextualização do movimento em seu tempo. É o caso de Louis Jadin, grande estudioso do Congo, que, escrevendo em 1968, caracterizou o antonianismo como precursor das agitações político-religiosas modernas na África. É também o caso do clássico Georges Balandier, que considerou o movimento como o primeiro a indicar o caminho, sob forma messiânica, “para o reino ideal da liberdade”, isto é, como proto-nacionalismo congolês. E assim
como esses, muitos outros seguiram semelhante linha de interpretação, muito politizada na verdade, ainda que tenham dado contribuição relevante, inclusive documental, para o estudo do movimento.
Crítica antiga, porém pertinenente a este tipo de interpretação, encontrâmo-la no português Eduardo dos Santos que, escrevendo em 1970, lembrou que o antonianismo havia pouco fora descobero nos arquivos e que nenhum movimento libertário congolês sequer conheceu a experiência antoniana de séculos atrás. Sugere que o movimento deve ser interpretado como resultado do tipo de missionação
levado a cabo no Congo, a saber, uma catolização superficial, habituada aos “batismos de carregação” (batismos em massa) e por isso facilmente permeável a inovações extravagantes20. Se Eduardo dos Santos acerta ao criticar os que vêem uma linha evolutiva entre o antonianismo e a descolonização dos anos 60, é contudo muito simplista ao atribuir o antonianismo às imperfeições da catequese praticada na África.


A historiografia mais recente, sobretudo a produzida a partir dos anos 1980, trilhou caminhos muito distintos, imprimindo leitura histórico-antropológica no estudo do antonianismo e procurando realçar, antes de tudo, os fenômenos de hibridismo cultural e a resignificação do catolicismo pela cultura banto.
É o caso de António Custódio Gonçalves, cuja obra procurou contestar todo e qualquer caráter anticolonialista no movimento dos antonianos. Gonçalves desenvolveu interessante estudo sobre a simbolização política no reino do Congo, desde a chefatura de mbanza Congo ao movimento antoniano, passando evidentemente pelo processo de ocidentalização religiosa e institucional levada a cabo na região. Nesse sentido, o movimento antoniano seria, em vários aspectos, anti-ocidental, sem por isso ser anticolonial, embora se tenha realmente apropriado de inúmeros elementos simbólicos do catolicismo, reiventando-os à luz da cultura Bakongo. Gonçalves compreende o movimento em termos de tensão entre matrilinearidade e patrilocalidade, entre formalismos tradicionais e novos, tendendo,
no limite, a pensar o antonianismo como expressão simbólica da crise interna por que passava o reino do Congo nos tempos de Kimpa Vita. A profetisa encarnaria, assim, no entender de Gonçalves, uma tentativa de restaurar as tradições Bakongo em face das profundas modificações provocadas pela formação de um Estado à moda ocidental.

 

Kimpa-vita.jpg

                                         Kimpa Vita ou Dona (Ndona em kikongo) Beatriz

 

 

Não resta dúvida que António Gonçalves dá contribuição interessantíssima e original para o estudo do antonianismo, e dela só fornecemos aqui uma visão superficial. Parece correto nosso autor ao descartar a caracterização anticolonialista que muitos viram no antonianismo, especialmente porque, no início
do século XVIII, o reino do Congo não mais era objeto da cobiça portuguesa (ele que, na verdade, nunca fora colônia propriamente dita) e longe estava de despertar novas arremetidas européias, fenômeno sabidamente posterior, datado do século XIX. Desde a batalha de Mbwila, para não dizer que antes dela, os portugueses se haviam concentrado em Angola e do Congo só esperavam que n atalhasse seus interesses no tráfico de cativos através de Luanda.


Por outro lado, a caracterização do antonianismo como processo de luta (restauradora) da “linhagem contra o Estado” corre o risco de simplificar o significado do movimento ao reduzi-lo, no fundo, a uma tensão exclusivamente interna entre as tradições aldeãs e as estruturas estatais herdadas do reinado de Afonso I, além de priorizar em demasia a questão do simbolismo político no exame da questão. O problema talvez resida em que, na época de Kimpa Vita, nem o Estado congolês era forte como fora no século XVI, nem tampouco o antonianismo parece ter preconizado um “retorno” radical às tradições anteriores a 1491. O antonianismo, vale relembrar, foi um movimento religioso de inspiração claramente
católica e sua grande originalidade foi “refazer” o legado da evangelização à moda local, reinventando o catolicismo, no limite, como tradição tipicamente congolesa.


Apropriando-se, portanto, das mensagens, liturgias e dos métodos missionários católicos como se fossem patrimônio da cultura Bakongo. Avanço significativo na interpretação do antonianismo vê-se nas
recentes contribuições dos norte-americanos John Thornton e Wyatt MacGaffey, aos quais nos referimos outras vezes no presente artigo, apesar de ambos tenderem sutilmente a relacionar o antonianismo aos movimentos anticolonialistas posteriores. De todo modo, à semelhança de António Gonçalves, Thornton e MacGaffey são de opinião de que o antonianismo só pode ser compreendido na longuíssima duração, remetendo-se-o ao processo de catolização do Congo nos séculos XV e XVI e adotando-se uma postura etno-histórica na investigação.


MacGaffey e Thornton defendem que durante os primeiros 200 anos de contato entre congoleses e europeus, houve o desenvolvimento de um catolicismo africano no qual os missionários cristãos viam sua própria religião, e as populações congolesas, a sua tradicional forma de reverenciar os deuses e de relacionar-se com o além. Diálogo de surdos ou reinterpretação de mitologias e símbolos a partir dos
códigos culturais próprios, a conversão ao cristianismo foi dada como fato pelos missionários e pela Santa Sé, da mesma forma que a população e os líderes religiosos locais aceitavam as novas designações e ritos como novas formas de lidar com crenças tradicionais.


No entender de MacGaffey, o acontecimento definidor da forma como os congoleses receberam os portugueses e sua religião foi o retorno dos reféns em 1485. O rei e a corte demonstraram enorme alegria com a volta dos reféns, “como se todos fossem mortos e ressucitados”, nas palavras de Rui de Pina. Diz MacGaffey que eles certamente foram vistos como sobreviventes de uma iniciação excepcional
aos poderes dos mortos, sendo o batismo prometido pelos visitantes uma iniciação numa nova e mais poderosa versão do culto dos espíritos locais22. Na cosmogonia banto, o mundo se dividia em dois - o dos vivos e o dos mortos. A comunicação entre os dois mundos era possível por meio de ritos executados por especialistas, líderes religiosos que detinham o conhecimento mágico requerido para tal contato: os itomi (plural de kitomi ), sacerdotes da comunidade, responsáveis pela fertilidade, guardiões das relações entre o homem e a natureza e das instituições sociais mais importantes como a família, além de legitimar a ordem política ao entronizar o novo chefe; os nganga, que prestavam serviços privados e trabalhavam com a ajuda de nkisi, objetos mágicos indispensáveis à execução dos ritos religiosos, originadores da noção de fetiche; os ndoki, feiticeiros especializados em ajudar seus clientes a prejudicar o próximo.


Partindo, como etno-historiador, da cosmologia congolesa contemporânea, na qual o mundo está divido em duas partes, a dos vivos e a dos mortos, sendo a água a passagem entre os dois mundos, MacGaffey tenta entender aquele acontecimento chave sob a ótica dos congoleses. Para os banto, os mortos têm a cor branca; requerem homenagens, presentes e obediência; podem conferir algum de seu poder aos vivos, que devem todos os seus dons a alguma forma de contato com eles e a iniciação requer um estágio de enclausuramento, como uma estadia no mundo dos mortos . Dessa forma, o retorno dos reféns em 1485 teria sido visto como uma volta do mundo dos mortos e tudo que eles viram em Lisboa tornou-se imediatamente alvo do mais intenso desejo, uma vez que dizia respeito ao reino da
sabedoria, à fonte do poder, do conhecimento, da riqueza.


Os brancos portugueses, vindos do mar, aparelhados de coisas nunca vistas e cuja eficácia foi logo comprovada, ofereciam insistentemente sua orientação na iniciação desse culto que parecia ser mais poderoso. O mani Nsoyo, como depois o mani Congo, teriam interpretado os rituais oferecidos como uma nova versão do culto que lhes era familiar, um sistema cósmico sobre o qual os portugueses, por séculos, nada souberam. Seus batismos cumpriram os requisitos de reclusão ritual, sendo outras pessoas que não as diretamente envolvidas no culto proibidas de ver os objetos e gestos sagrados. Os brancos trouxeram novos objetos sagrados, novos ritos, que foram prontamente incorporados pelos chefes, que dessa forma tiveram seus poderes fortalecidos, e tanto, a ponto de acatarem as exortações dos padres e ordenarem uma grande queima de nkisi, objetos rituais da tradição local.


No entender de MacGaffey, esse padrão estabelecido logo nos primeiros contatos permitiu que Portugal e o Congo por séculos se relacionassem orientados por pressupostos eficazes, porém falsos, sobretudo o de que conceitos análogos eram idênticos. Assim, as estruturas nativas foram em grande parte conservadas, com cada povo lendo a realidade conforme as suas concepções. O primeiro catecismo escrito em kikongo, língua corrente na região, de 1556, e o primeiro dicionário, de 1652, mostram o desenvolvimento de um vocabulário ambíguo que mediou o diálogo de surdos, levando ao que o autor chamou de institucionalização de um mal entendido25. Nos primeiros tempos da cristianização, objetos rituais africanos e objetos sacramentais cristãos viram-se confundidos, na prática, sendo ambos
chamados de nkisi pelos próprios missionários. Da mesma forma, os missionários eram chamados de nganga, como os mágicos locais, ocupando ambos lugar fundamental na realização de ritos ligados ao nascimento, ao casamento, à colheita, entre outros momentos chaves na vida das pessoas e das aldeias.


John Thornton26, por sua vez, argumenta que uma das diferenças entre a religião banto e a católica dizia respeito ao papel e às características básicas dos agentes religiosos, intermediários entre este mundo e o outro. Enquanto os nganga e os itomi não tinham controle completo sobre as explicações de ordem religiosa e não faziam parte de um grupo solidamente institucionalizado, podendo mesmo haver
frequente contestação de suas interpretações, o clero católico era fortemente estruturado, hierarquizado, regulamentado, detendo a Igreja, por meio de seu clero, o poder de estabelecer ortodoxias e controlar rigidamente o que podia ser aceito e o que deveria ser repelido do corpo da religião.


Mas se os sacerdotes de ambas culturas agiam segundo regras diferentes, havia semelhanças, segundo Thornton, comuns à grande parte da experiência religiosa, que uniam as duas religiões. Tanto para africanos como para europeus, e muitíssimos outros povos, a semelhança residiria na capacidade de interpretação de informações do outro mundo, para a qual a religião seria uma espécie de janela. A
maneira de se comunicar com o além não seria muito diferente entre congoleses e portugueses: sinais deveriam ser decodificados para que um sistema religioso se fosse estruturando. Noutras palavras, as “revelações” do além deveriam ser interpretadas por um corpo de especialistas e revertidas para o bem da comunidade.

 

Se a aproximação com o sobrenatural possuía semelhanças, as diferenças relativas à organização do corpo sacerdotal faziam com que não fossem as mesmas as relações que as duas religiões mantinham com os mecanismos relativos à interpretação das revelações e sua incorporação ao já estabelecido. Do encontro das duas religiões, seus sacerdotes e seguidores, nasceu, segundo Thornton, o que vem sendo chamado de cristianismo africano, que aceita várias revelações cristãs e combina de forma
dinâmica as diferentes cosmologias.

 

A linha de interpretação proposta por Thornton e MacGaffey talvez nos ofereça a chave para o entendimento do fenômeno Kimpa Vita e o movimento dos antonianos. É certo que talvez haja certo exagero, sobretudo no caso de Thornton, quanto às analogias - quando não homologias - estabelecidas entre o catolicismo e a religiosidade banto. Convém não esquecer que muito do que se sabe acerca dos
congoleses na época dos primeiros contatos com os portugueses, decorre do registro dos missionários e cronistas enviados nas expedições, homens habituados a “traduzir” na sua própria linguagem cultural os traços de culturas distintas que lhes pareciam passíveis de assimilação. A qualidade dos registros posteriores não fugiu a essa regra, não obstante os congoleses tenham produzido fontes escritas em
profusão a partir de Afonso I. Não esqueçamos, neste caso, que os “escribas” do reino congolês foram sistematicamente aportuguesados, a par da catolização da religião e da conversão das instituições sociais e políticas banto às tradições portuguesas.


De todo modo, se as diferenças estruturais entre os dois corpi religiosos eram maiores do que as semelhanças supostas pelos dois autores norte-americanos, e se talvez não seja exato supor ab origine que a religião congolesa fosse uma religião revelada (traço clásico dos chamados monoteísmos), as analogias e mesmo homologias religiosas detectadas por Thornton e MacGaffey se tornaram
realidade com o passar dos séculos. Catolização da religiosidade banto e africanização do catolicismo configuraram os nós imbricados de um mesmo processo - e os dois autores, neste ponto, o percebem e descrevem muito bem.


Não lhes escapou, por outro lado, a associação verdadeiramente oficial entre catolicismo e poder no reino do Congo, fenômeno, este sim, que marcou a formação do reino e os conflitos entre chefaturas desde D.João I, o pai de D. Afonso, e primeiro monarca católico do Congo.Tanto é que os dois autores percebem no movimento liderado por Kimpa Vita uma reação “popular”, embora inscrita nos marcos do catolicismo, contra o catolicismo oficial vigente no reino. Reação popular e por isso talvez mais “africanizada” do catolicismo ou, quando menos, hostil aos sacramentos, à cruz e aos missionários.


É sugestiva, portanto, a afirmação de MacGaffey de que “a relativa democratização da religião” entre os antonianos ameaçava as hierarquias existentes e as estruturas políticas e sociais das chefaturas, propondo uma ordem política alternativa à vigente. Ordem alternativa não somente à fragmentação política de inícios do século XVIII, mas talvez à própria estrutura da monarquia luso-católico-congolesa erigida dois séculos antes. É nesta linha de argumentação que se move, de certo modo, António Gonçalves, embora este último radicalize a oposição em causa, ao caracterizá-la em termos de linhagem versus Estado, africanizando quiçá em demasia o antonianismo.


Thornton, por sua vez, localiza socialmente a gênese do antonianismo no desconforto de toda uma geração de camponeses flagelada pela guerra permanente e pela ameaça do tráfico atlântico. O movimento antoniano, afirma Thornton, “nascido do desejo de paz dos camponeses do Congo”, teria resultado numa poderosa e nova ideologia religiosa. Ideologia que combinava a religião tradicional congolesa com a mensagem dos padres cristãos devidamente “congolizada”. Catolicismo “congolizado”, mas nem por isso anti-cristão (apesar de herege), insiste Thornton, pois no mínimo não se opunha à fé cristã tal como ela fora capaz de ser adotada no Congo e integrada à estrutura social e política do reino.


Tem-se, portanto, um quadro em que o antonianismo se afigura como movimento predominantemente popular, embora liderado por uma jovem aristocrata congolesa e apoiado por facções nobres do reino. Movimento católico, embora a cosmologia antoniana, sobretudo por africanizar, quando menos, o que há de mais sagrado no cristianismo (a concepção do Cristo), indique tratar-se do “cristianismo africano” de que fala Thornton. Um movimento em que, malgré seu catolicismo, pulsavam tradições e crenças mui caras à religiosidade tradicional dos banto, a saber, a crença no poder dos mortos.


Kimpa Vita ancorou seu poder, antes de tudo, na morte. Morrera e ressucitara, encenando, num só ato, o enredo que levara os reis congoleses a abraçar o cristianismo séculos antes. E Kimpa Vita “reatualizava o mito” através do rito de sempre morrer às sextas-feiras para voltar nos sábados, após jantar com Deus.


Encontrava o “Senhor do Mundo” bakongo, o governante dos mortos, de que falava o cronista de antanho, realimentando com isso seu poder espiritual de nganga. Mas não esqueçamos de que, Kimpa Vita, ao morrer e ressucitar ad perpetuam, deixara de ser Kimpa Vita ou D.Beatriz para ser Santo Antônio. Santo Antônio de Pádua ou de Lisboa, sem deixar de ser Santo Antônio do Congo. O “segundo Deus”, dele dizia a profetisa, dizendo de si mesma, portanto (porque ela era ele, se nos permitem),
cuja importância se revela nas imagens de marfim ou bronze cuja palavra em Kikongo significava “boa sorte”.


Kimpa Vita só adquiriu a importância máxima que chegou a ter após retornar do “mundo dos mortos”, para onde ia e de onde vinha semanalmente. Mas ia e vinha como Santo Antônio, na verdade. Quando voltou de vez a ser Kimpa Vita, “a Santo Antônio congolesa” perdeu tudo, inclusive a vida. Bernardo da Gallo, o capuchinho que a interrogou, registrou que, ao morrer na fogueira, “a pobre Santo Antônio” não
ressuscitaria jamais. Mas, fiel aos acontecimentos, registrou também que os “antonianos” recolheram os fragmentos de seus ossos, guardados como se relíquias fossem, e espalharam que Beatriz não havia desaparecido senão sob uma de suas múltiplas formas.

 

 

Obra publicada sob o título: Catolização e poder no tempo do tráfico: Reino do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII

 

 


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