Por Dr José Carlos de Oliveira.
António Povoa, o Mensageiro Tocoista
Muitos mfumu a kanda, chefes e ao mesmo tempo conselheiros tradicionais kongo, faleciam de velhos ou de doença, sem poderem
transmitir os seus segredos rigidamente guardados. Desses segredos, dependia o equilíbrio da vida do clã. A sabedoria de viverem sob a tutela da administração colonial portuguesa, fazia com que
aparentemente a vida não tivesse nada para transmitir. Ora, é exactamente a história da ‘Vida Vivida’ que tem o poder de orientar os povos. Alguns responsáveis transmitem às
gerações seguintes conselhos que, para eles, são paradigmas do seu tempo e do que vem a seguir, escolhem então entre os seus, o que, por vezes, tem a ver com indivíduos que não pertencem por
consanguinidade ao grupo de parentesco.
Foi o que aconteceu connosco. António Povoa, responsável tocoísta e pertencente ao ‘conselho de anciãos’, na época em que pertencer ao grupo
religioso era extremamente delicado, foi‑nos educando de forma muito especial. Em carta que nos dirigiu a 20 de Julho de 1986 e com uma relação de muita proximidade diz‑nos, a determinado
momento, o seguinte:
“Apesar de ser esta a primeira vez que lhes escrevo peço‑lhes que não deixem de ter confiança em mim pois tal facto deve‑se à falta de
alguém que pudesse entregar a carta pessoalmente, porquanto como é do vosso conhecimento nem todos os segredos devem de ser revelados a toda a gente e em qualquer momento. Como o caso concreto
desta conversa que constitui segredo religioso e que em nada agradaria a indivíduos não crentes. (…)”
Em 1991, por ocasião das grandes festividades tocoístas (realizadas nesse ano, pela primeira vez, após a independência) durante
a nossa estada em Luanda, ficámos alojados no hotel Panorama, situado na ilha. António Povoa fez questão de ‘conversar’ connosco. Não o fez no hotel,
fomos ‘conversar’ para a praia. Do muito que continuou a ensinar‑nos, ficou a forma de nos prepararmos para encontrar os caminhos que nos permitiram discernir e encarar muitos
assuntos sobre os zombo, em geral. As conversas só aconteceram depois de se ter realizado a tal grande festividade tocoísta que não tinha lugar há mais de dezassete anos. Para que pudéssemos
assistir às celebrações, teve lugar uma reunião especial, em casa do, na altura, ‘Velho Simão’. Nas festividades estiveram presentes grupos tocoístas de toda a Angola, foi um privilégio termos
assistido, a tantos momentos que ficaram registados em fotografias.
O agora pastor António Mário a apresentar‑nos à Assembleia
António Povoa era um professor tradicional zombo e, além de conselheiro, entre os dozedo ‘Mais Velho Simão’, ou
seja, do profeta Simão Gonçalves Toco era ainda um excelente alfaiate, ‘tailleur’, como gostava de ser chamado. Conhecia toda a metodologia da modelagem do vestuário
masculino.
Este aspecto da profissão teve sempre grande relevância entre os zombo tocoistas. Para Simão Toco, a realização económica do seu povo e
logicamente a sua auto‑suficiência, face a outros aglomerados populacionais, era factor de primordial importância. Para que se possa avaliar a forma, como já na altura, escolhia o seu ‘Conselho
Director’ citamos do relatório30 do padre católico Alberto Ndandu o seguinte trecho:
“(…) Em Sadi, povo natal de Simão, a seita funciona sob a direcção de Nkemi, o mesmo Mbongo‑Mpassi, sucessor imediato de Minguiedi
Mfinda.
Este Nkembi é assistido por um conselho formado por um tesoureiro, por um económico, por alguns anciãos, por um secretário, por
catequistas que ensinam nas aldeias, pelos alfaiates, etc. (…)”
Aliás, os melhores alfaiates zombo foram, nos anos cinquenta, sessenta e setenta do século passado, quase todos tocoístas. O
perfil humanista de António Povoa, no que se refere ao respeito que guardava àqueles com quem convivia, fossem o que fossem, fazia dele um homem muito respeitado. Foi‑nos apresentado por Samuel
Eduardo, outro tocoísta, condutor auto de profissão, que com António Bala constituíam a nossa protecção, eram os nossos informadores e companheiros de confiança. Deixemos aqui muito
claro que nunca fizeram o mínimo gesto para atraiçoar os seus, bem pelo contrário, se de algum modo, a nossa actuação os prejudicava, não deixavam, estamos certos, de ponderar sobre
a questão e resolvê‑la, em conformidade. A fotografia que acima foi tirada, por volta de 1965, na povoação de Taya, a célebre Zulu Mongo dos seguidores de Simão
Toco. Hoje, entre a sua gente, é tratado por Sua Santidade. A postura do grupo, homens, mulheres e crianças, não deixam margem para dúvidas. Estava‑se naquele tempo, perante o
melhor das elites zombo e até kongo.