Por Dr José Carlos de Oliveira.
A Comerciante das Praças, no Comércio Tradicional Zombo (2)
Além de serem o suporte familiar, constituem‑se informalmente em associações informais. Os maridos deixaram, há muito, de ser pedreiros ou
carpinteiros (profissões que aprenderam na época colonial). Estão velhos antes do tempo. Enquanto as mulheres trabalham, os homens olham‑nas com estranheza e indiferença, recostados em suas
cadeiras de braços e pés assentes em pequenos bancos. A forte e violenta formação pragmática que estas mulheres têm, através de uma economia de guerra, há muito as fizeram esquecer os
comportamentos femininos tradicionalmente apaziguadores. Com as forças que lhes restam, tratam da família, em casa, e deslocam‑se ao mercado, como há séculos o vêm fazendo, tal como nos tempos da
colónia, no trabalho compelido como mulheres de contratados.
O processo que as obriga a atingir a idade adulta, sujeita‑as a diversos ritos de passagem ao longo da vida. Para uma melhor compreensão do
fenómeno, organizámos, operacionalmente, os diferentes patamares do processo vivencial em ritos de passagem por classes etárias e subsequente desempenho mercantil. Este nosso conceito operacional
não invalida outro tipo de projecções sobre o mesmo assunto. Trata‑se, como referimos, de uma opção operacional do estudo à qual nos adaptámos:
– 1.º A mulher, hoje sexagenária, continua ligada a preceitos do passado colonial e também da independência nacional. Acerca desta realidade,
será interessante, lembrar que, tal como aconteceu durante séculos, cumpre os rituais de puberdade e do casamento como preceitos exigidos pelos seus ancestrais familiares. Apesar disso é
suficientemente flexível para entender, muito pragmaticamente, os novos tempos, o novo espaço familiar onde se encontra inserida e onde ainda se sente útil para ter ‘sucesso’ na sua banca do
nzandu que visita, comprando e vendendo para ajudar ao ‘mealheiro’ da chefe de família. A esmagadora maioria já se esqueceu do vocabulário da língua portuguesa, fala e raciocina em
kikongo, lingala, e desde 1975, está atenta ao kimbundo, como língua afim do seu kikongo operacional. Viveu demasiado os tempos difíceis de participação na luta armada ao lado dos seus homens da
UPA, do MPLA e da UNITA.
– 2.º A verdadeira chefe da família, (no nosso entender), é aquela que consegue a leitura do passado e dele se serve para consertar o
presente precário, ou seja, a mulher que ronda os quarenta anos. A sua maior característica continua a ser a de saber equacionar o problema da instabilidade familiar resultante dos parcos meios
de que dispõe e com eles orientar o seu lar. Adapta‑se ligeira, às novas realidades. Com o casamento tradicional a que acrescentou por vezes o católico ou protestante, continua sendo, com o seu
comércio particular, o suporte da família embora subordinada ao sistema ancestral. A sua idade indicia um breve e infantil passado colonial a que junta a árdua ajuda prestada ao serviço da
independência nacional. Depara‑se com uma vida vivida na companhia de alguns companheiros. Todos eles inimigos uns dos outros e muitas vezes da mesma família consanguínea. Já foram educadas na
cultura do “esquema e da gasosa”, onde vale tudo para conquistar um lugar ao sol. Têm sempre presentes as formas por elas concebidas para fugir ao controlo dos homens, no que se refere
aos seus parquíssimos ganhos, uma vez que aqueles se tornaram, não só inúteis como inoperativos, no que concerne à receita familiar.
– 3.º Ela e a mãe (a anterior) viram‑se a braços com gravíssimos problemas, como por exemplo em 2005 com o vírus de Marbourg e em 2006 com o
surto de cólera no distrito do Uíje. Redobram os cuidados básicos com a saúde, área onde os preceitos tradicionais têm uma grande importância e o problema da água para a alimentação e higiene
caseira, surge de uma forma capital, tornando‑se então um lucrativo negócio.
Disseram‑nos algumas vezes: vai passar depressa, afinal já morremos muitos com a guerra, a doença do Margourg e a cólera não vão matar
mais. Enfim, não será esta a forma mais eficaz de aceitar a situação? E dela partir para encarar a realidade de ver os vizinhos a morrer, as suas famílias a ser atingidas e encarar de frente
a vida?
São estas duas mamãs, as que trabalham nas lavras, que com maior frequência (quase diária) vendem nas praças, que cuidam dos filhos,
alguns ainda de tenra idade que estão mais preparadas para a mudança. Mudança de determinados processos culturais ancestrais e que possibilitam uma nova forma, mais positiva, de encarar o
futuro.
Estas mulheres são as mães novas, porque as mães mais velhas são as de sessenta anos (as bisavós). Ambas estranham, e até fazem mau
juízo sobre as poucas brancas jovens com quem contactam e lhes dizem não terem filhos, (referem‑se às operacionais das ONG), não entendem que estas brancas, só tenham primos e sobrinhos. Não
entendem que estas brancas venham para o Uíje solteiras, com a principal razão de obter meios financeiros que as ajudem a ter uma casa e só depois então pensarem em ter filhos. Não entendem que
as brancas só queiram ter um ou dois filhos no máximo. Continuam a não entender como é que duas ou três mulheres vivem numa casa com um homem (referem‑se aos voluntários das ONG) e não tenham
relações sexuais com ele, uma vez que estão na idade e longe de casa com um homem por perto.
Estas mamãs quando começam a ter filhos têm que contar com aqueles que vão morrer. Uma delas, em 2005 disse‑nos:
sou mãe de nove partos. Na verdade, só sete estavam vivos, mas para ela o importante foi o facto de engravidar nove vezes e não quantos filhos estavam vivos. E isto relaciona‑se com as
muitas crianças que às vezes vivem com elas e não são filhas do mesmo pai. Acerca desta situação, que algumas não aceitam, uma delas disse‑nos: temos que viver mesmo assim, os nossos homens
são mesmo assim.
E este viver, subjectivamente ‘mesmo assim’, foi‑nos confirmado com as informações que obtivemos (2005) de pessoal de organizações
humanitárias, de algumas instituições, órgãos do governo (Ministério da Agricultura) e dos nossos informadores‑chave. Acrescentemos que desde o final da guerra (2002) a situação de grande risco
das populações tende, visivelmente, a melhorar especialmente porque as vias de comunicação, pouco a pouco, vão permitindo a passagem de camiões de transporte de mercadorias. Infelizmente Maquela
do Zombo continua a ter graves problemas no acesso rodoviário. As populações aproveitam então a estação seca para passar de uma cidade para outra apesar do receio das minas colocadas nas estradas
e ainda não detectadas.