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Portal da Damba e da História do Kongo

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Página de informação geral do Município da Damba e da história do Kongo


Os Zombos na Tradição, na Colónia e na Independência (29)

Publicado por Muana Damba activado 2 Enero 2012, 01:44am

Etiquetas: #Fragmentos históricos do Uíge.

 

 

Por Dr José Carlos de Oliveira.


 

‘Panza, Panza’: de Lavadeiro a Guerrilheiro

 
O caçador negro, em África, é antes do mais um nsondody nzila,o que mostra o caminho (no dizer dos kongo). Por norma, não se descuida pisando as pegadas já lidas (não vá ter que as reler, buscando pormenores que lhe tivessem passado despercebidos), faz a sua leitura de lado, um ou dois passos, atrás dos sinais a ler, utilizando, para tal, uma pequena haste. Aplica ancestrais conhecimentos como sejam o impregnar a roupa que leva vestida, com o odor de um animal previamente escolhido, elimina assim o seu próprio odor. Com este saber, não interfere no ambiente como estranho, tudo se passa como se ele lá não estivesse. A permanente utilização dos pequenos cães de caça é de vital importância. O homem negro da África dos matos adora cães e tem razões para isso. Não há senzala onde não se oiça pelo menos uma boa dúzia de cães. Nestas circunstâncias, o cão frequentemente deixa de ser alimentado pelo seu dono, tem que se governar e governa‑se como pode: caçando. Os animais têm os seus terrenos favoráveis e desfavoráveis, têm o seu retiro, numa mata própria, e nem todas as presas preferem os mesmos terrenos. Às vezes, o caçador, no meio da savana, sobe a qualquer arbusto de dois ou três metros de altura para perscrutar em redor. Basta que veja, acima da orla do capim, um ou dois metros, olha com redobrada atenção o capim e verifica se vislumbra uma pequena ondulação. Isso será sinal de que algo se move.
 
João Kembu foi lavadeiro da família da firma JOJ, em Kibokolo, até Abril de 1961. Os zombo não autorizavam que as suas mulheres servissem em casa dos brancos, preferiam ser eles a fazê‑lo. Na altura, o João teria cerca de vinte anos e dizia‑nos que nenhum caçador deixa de querer tanto aos seus cães como a si mesmo. O caçador nunca se esquece que pode cair na sua própria armadilha. Jamais se esquece da psicologia da presa especialmente se for perigosa. Pode não estar morta e, sem nenhum aviso, atacar de repente. Nestas circunstâncias, o cão é dum valor inestimável: rodeia com a maior precaução o sítio onde sabe que o animal está acoitado, volta atrás dando sinal de perigo, levando a presa a mexer‑se o que obriga o tronco armadilhado a dar sinal. O João era exímio a armar laços para caça pequena, (seixas, coelhos, corças e até veados) preparava meticulosamente o seu laço, escolhia o pau que serviria de tensor e, finalmente, fazia a cama onde o animal se debruçaria para cheirar o sinal. Aí, despejava o conteúdo de uma garrafa que, para o efeito, trazia consigo (urina de cabra recolhida em época de cio). Sabia que o seu odor se propagava com grande intensidade, atraindo os machos ao local. Era‑lhe depois muito fácil verificar, à distância, se o animal tinha caído na armadilha. Bastava olhar para o sítio, onde estava o tronco escolhido para tensor, e ler os sinais. Por vezes, a quietude do lugar era enganadora, soltava então o cão que ia direito ao local. Podia acontecer ver os arbustos mexerem e isso era sinal de que a presa estava viva. Outras vezes, o cão latia e dava meia volta, o que era sinal de perigo, portanto, dirigia‑se para o local com a maior precaução.
 
Foi também com um grande caçador chamado Kasengu, que aprendemos a introduzir‑nos no mato em busca de caça. A primeira lição foi aprender a andar a corta‑mato de noite. Usávamos então sapatilhas, para que os dedos dos pés fossem mais sensíveis ao chão pois lia‑se melhor a irregularidade do terreno. Ao mesmo tempo que se caçava, iam‑se aperfeiçoando os conhecimentos de kikongo ligados à caça, tanto na forma falada como na escrita.
 
A visão do mundo na qual os kongo e, em geral, os grupos etno‑linguísticos bantú acreditam é no sistema mágico religioso. Acreditam estar debaixo da influência de forças do maligno que encarnam nos seus familiares, levando‑os a serem os agentes de todos os males invasores da família. O João Kembu dizia‑nos, à sua maneira, quando estávamos sós, que a sua mãe lhe confidenciara ter duas personalidades: uma de Deus e outra pérfida que era do Diabo. Se não amasse a Deus acabaria feiticeira. Estas práticas de ontem são também as de hoje. Na Europa, embora numa escala muito menor, não nos são estranhas. Todos os dias, ao percorrermos com o olhar os jornais diários nos damos conta deste fenómeno. Os homens e mulheres, que dele vivem, não são fanáticos, são manipuladores, são mesmo muito inteligentes e hábeis no seu trabalho, enganam intencionalmente.
 
O João tinha pavor ao fenómeno do kindoky, por nós já abordado, mas foi ele quem nos abriu as portas a tão fascinante assunto, embora mais tarde tivéssemos quem nos descobrisse ‘malembe, malembe’, ou seja, ‘devagar, devagar’ o fio da meada. O fenómeno kindoky ainda vai perdurar por muitas gerações, em toda a África subsaariana. Apesar de todos os aspectos positivos mencionados da cultura kongo, esta influência maligna é um enorme obstáculo à saúde mental e física das suas populações. A verdade é que a coacção mágica do kindoky faz com que sofram e morram todos os anos muitos milhares de africanos. África tem necessidade urgente de se ir libertando deste tipo de fenómeno.
 
Num dia de kengue ou kia’ya (mercado de quinta‑feira), depois da independência do Kongo, ouvimos no caminho que leva ao mercado um jovem que gritava alto: “panza, panza”. Perguntámos ao João o que significava o termo panza. O João respondeu‑nos que aquele homem estava com ndoky, era maluco, mas adiantou‑nos que, em francês, aquela palavra era Indépendance. Assim, perguntamos‑lhes o que queria dizer, ao que nos respondeu que, na língua kongo era kimpuanza, mas não sabia o seu significado em português. Registamos, na nossa memória, o termo ouvido, panza que, afinal não era mais do que o grito de Independência.
 
Poucos dias após os primeiros ataques de 15 de Março de 1961, o João teve para nós uma frase que por cem anos que vivamos não a esqueceremos “Patrão quando eu fugir, foge também”. Tem sido esta frase que nos pauta a vida. Existem certos casos, em certas ocasiões, em que a amizade conta sobretudo na vida dos humanos. Mais, o João não atraiçoando os seus antepassados, quis preservar uma amizade pautada por dois mundos opostos.

 

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