Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS.(Administrador da Damba 1945-1953).
OS RITOS DE INICIAçÃO DA PUBERDADE.(1)
Nos relatórios anuais do administrador de então e nos dos anteriores, no capítulo respeitante à etnografia da região, constava sempre a inexistência da cerimónia da circuncisão que, como se sabe, faz parte daqueles ritos em muitas culturas.
As práticas que integram os ritos da puberdade têm como finalidade iniciar os jovens na plena vida da comunidade. Constituem a forma de celebrar, de maneira solene e até,por vezes, dramática, a transição de criança para adulto e através delas se completa e se aperfeiçoa a educação que até aí se tinha processado como que espontaneamente.
O objectivo principal destas cerimónias é a preparação das crianças e dos adolescentes para a plenitude do status de adulto, o seu fortalecimento físico e psíquico, a sua iniciação no conhecimento integral da cultura do seu grupo. Constituem também a sua solene aceitação no seio da comunidade .
Nos ritos da iniciação da puberdade sucedem se diversas fases que balizam, de forma segura, a profunda transformação que se vai operar na vida e até na personalidade dos jovens que a eles se submetem. Na sequência desses ritos sucessivos, de todo se apaga o passado, havendo como que a transmutação da criança ou adolescente num novo indivíduo. Há, em primeiro lugar, a separação da família e da comunidade. Durante um espaço de tempo bastante dilatado, que varia entre um e dois meses e até a mais de um ano, os rapazes passam a viver no mato, enclausurados num recinto vedado que,previamente, foi preparado para o efeito.
As cerimónias da iniciação não são efectuadas todos os anos e podem, por isso, reunir rapazes de diversas idades, normalmente entre os oito ou nove anos e os catorze ou quinze, e oriundos de diversas aldeias pertencentes à mesma linhagem. Por vezes arealização dos ritos da iniciação é determinada pela chegada à idade própria de um filho ou sobrinho do respectivo chefe.
Logo no primeiro dia do rito da separação são as crianças circuncidadas por um especialista. Várias são as razões atribuídas à prática da operação. Para uns será um sacrifício propiciatório oferecido aos antepassados do clã, para outros funcionará como uma aliança com a terra mãe através do sangue que sobre ela cai. Mas as análises antropológicas mais recentes tendem a concluir que a circuncisão não terá uma finalidade sacrificial mas constituirá, apenas, um símbolo da passagem da criança para adulto, através do corte do prepúcio, e também uma preparação fisiológica para a actividade sexual e para o matrimónio. Homem não circuncidado não seria aceite como marido por qualquer mulher. Nesta ligação da circuncisão com a vida sexual, há quem atribua um papel afrodisíaco à calosidade que sobrevem ao corte do prepúcio, por a cicatrização se fazer por segunda intenção, visto não haver uma conveniente sutura após a operação. E a interpretação da circuncisão como alheia a rito religioso e tendo uma finalidade essencialmente prática, alia se à consideração de que o cunho simbólico que lhe é atribuído não será de natureza religiosa ou mágica mas apenas social. Esta dessacralização da circuncisão parece ter justificação na possibilidade de ser efectuada não por um nganga28, mas por um especialista, por vezes até estranho ao grupo. Mais adiante referirei uma experiência por mim vivida e em que o operador de um grupo de moços, nos rituais da iniciação da puberdade de um dos sobados da Damba, foi o Delegado de Saúde.
Durante o tempo de segregação são iniciados nas actividades dos adultos, por indivíduos que a comunidade considera como aptos para tal função. São lhes dadas a conhecer as concepções religiosas do grupo e os mistérios do culto, são lhes ministrados conhecimentos sobre as práticas mágicas, e também sobre os mitos do seu povo e as tradições do clã a que pertencem. Também lhes são revelados os segredos que até ai lhes eram interditos e que fazem parte da cultura masculina, como sejam os dos mascarados. A iniciação nestes segredos é feita de uma forma tão dramática que eles nunca mais os revelam às mulheres e aos não iniciados, para quem os mascarados têm qualquer coisa de sobrenatural.
Aprendem, também, as danças rituais, as músicas e os cânticos que acompanham essas e outras danças em uso na região. São igualmente submetidos à aprendizagem de certas artes e ofícios e, durante todo este período de segregação, praticam intensamente a pesca e a caça, aprendendo a fazer armadilhas e a seguir os rastos dos animais.
Em muitas sociedades são também treinados para mais tarde poderem suportar os revezes que o futuro lhes pode reservar, submetendo se a duras provas físicas e morais,que devem aguentar e enfrentar com estoicismo, mostrando coragem e firmeza de ânimo, habituando se, assim, a resistir à fadiga, ao sofrimento físico e às intimidações psicológicas.
Todos os que, na mesma altura, eram submetidos aos ritos da puberdade ficavam ligados, pela vida fora, por laços de profunda camaradagem, considerando se quase como irmãos, auxiliando se mutuamente em todas as circunstâncias e acorrendo em defesa uns dos outros se necessário for. Quase sempre, como em outro passo já foi dito, os rapazes recebem um novo nome, em virtude de ter havido uma transformação profunda na sua personalidade.
Em algumas regiões de Angola aprendem a utilizar uma linguagem secreta, que entre eles usam quando não querem ser entendidos por mulheres ou não iniciados que estejam perto.
Normalmente as cerimónias terminam com juramentos solenes, como, por exemplo,o de nunca revelarem o que se passou durante os ritos da iniciação. E juram, também,respeitar sempre as mulheres dos seus tios, dos mestres e companheiros do rito. Estes juramentos vêm coroar todo o cerimonial de aparato e de mistério que caracteriza os ritos da iniciação e que cria uma tensão emocional que jamais se apagará no espírito dos iniciados.
(28-Nganga é o nome dado a todos os intervenientes em assuntos ligados à religião e à magia. Há diversos tipos de nganga, de acordo com as suas especialidades. Até os missionários cató1icos são, em todo o Congo, conhecidos por Nganga Nzambi sendo Nzambi a designação de Deus.)
Continua...
Em colaboração com JOÃO GARCIA e ARTUR MÉNDES.