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Portal da Damba e da História do Kongo

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LEMBRANDO AS BATUCADAS EM NOITES DE LUAR NA DAMBA.

Publicado por Muana Damba activado 27 Septiembre 2020, 18:56pm

Etiquetas: #Coisas e gentes da Damba

LEMBRANDO AS BATUCADAS EM NOITES DE LUAR NA DAMBA.
 
Por Miguel Kiame
 
Noitadas mirabolantes
 
Nas décadas de 50 e 60 do século passado que circunscreveram a minha meninice e adolescência e, certamente, noutras anteriores àquelas, o entretenimento-mor a disposição de crianças, jovens e até adultos, tinha lugar imediatamente a seguir a última refeição do dia, a principal para muitos de nós.
A garotada associava-se em grupos de interesse para expressar o regozijo por mais um dia vencido e, fundamentalmente, por mais uma ocasião para exteriorizar, de forma expansiva, emoções e sentimentos reprimidos ao longo do dia. A noite era, para nós, a oportunidade para os desmandos inocentes da meninice, uma luzinha de meiguice que irradiava um deslumbrante resplendor de alegria.
Nas noites luarentas e briosas de imensas constelações, o convite à saída de casa era tácito, óbvio e irrecusável. Se, acaso, ainda não se tivesse concluído a refeição, era às pressas que as últimas boladas de funge eram engolidas, muitas vezes, em tamanhos superiores aos habituais que designávamos de “makuti”, com o intuito de terminar o mais cedo quanto possível e zarpar. Abrindo um parêntese quanto aos “makuti”, eu tinha um primo, “Chá kya Nkatu”, de sua alcunha, que era versado nesse domínio.
Era um verdadeiro atentado paras nós as crianças, porque ele engolia bolas de funge “makuti”, superiores ao tamanho de uma bola de ténis de campo. Em três ou quatro investidas varria o funge todo e ficávamos nós a ver navios. Portanto, as noites, com a sua dinâmica e movimentações, tomavam, por completo, o domínio das emoções, manifestações de inefável alegria e tinham o feitiço de emprestar à vida um pouco de sabor.
Havia grupos congregados na base de cantigas populares cadenciadas a volta de suculentas batidas de tambores e batuques, com danças de roda, requebros apaixonados e apaixonantes em que os mais audazes não perdiam a oportunidade para dar a lume os seus incontidos sentimentos amorosos.
Não foram poucas as uniões conjugais forjadas, pactos de amores desenfreados, tendo como pombais de amor, as mirabolantes noitadas. A competição sempre esteve presente e especialmente quando o objectivo era influenciar e/ou cativar o(a) parceiro(a) através da expressão corporal com gestos subtis e de elevada complexidade de execução, com modulação vocálica magistral, qual querubim do coro angelical ou ainda com a exibição de dotes extravagantes de tocadores de batuques que ao mesmo tempo que apimentam as cantigas e danças com ritmos sincronizados num manancial de notas e compassos, executam exercícios de arriscado equilíbrio, agilidade e destreza.
Para todos nós, a noite era um cenário multifacetado que enchia luxuriosamente os olhos, maravilhava os ouvidos e punha-nos boquiabertos perante a fluidez de tantas excitações. Eram momentos de intenso convívio que nos esvaziavam completamente a noção do tempo transcorrido porque quando assustávamos já a noite, a nossa doce companheira, ia longe e os progenitores estavam cansados de nos chamar para o recolher obrigatório.
Além da dança/batuque/canto havia outras modalidades de entretenimento. Lembro-me, por exemplo, da brincadeira que designávamos de “nsusa”. Reunia dois grupos em disputa em que o malabarismo e a rapidez dos gestos faziam parte da técnica para levar de vencido o adversário. O clima reinante era de verdadeira roda-viva, muita euforia e só mesmo os apelos insistentes dos pais poderiam demover-nos daquele encanto.
A noite é propensa para uma boa propagação do som o que, naturalmente, tornavam perceptíveis as batucadas e a efervescência dos ambientes das aldeias circunvizinhas. Por vezes, os integrantes dos grupos de uma aldeia rendiam-se à beleza e ao encanto dos coros melódicos vindos dessas aldeias e não eram raras as ocasiões em que não resistiam e rumavam àqueles conglomerados.
Momentos inesquecíveis, de vida “vivida” intensamente, momentos que foram abruptamente sacudidos e que nos foram coarctados pelos acontecimentos do início da luta armada, em 1961. Depois disso, “se acabou la diversion …”, murcharam os corpos ardentes que gingavam envoltos numa aura de alegria inebriante, a lua perdeu o seu brio e em vez dela as noites passaram a ser escuras como o breu, as aldeias desarticularam-se, umas desertas, outras destruídas, outras queimadas.
As pessoas fugiram, umas para as matas, outras para o vizinho Congo. Razão seja dada ao dito popular segundo o qual quando o batuque atinge o seu auge é porque está prestes a rebentar. Dito em kikongo: “Ngoma na se izenza se itobuka”. (continua)

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