Por Miguel Kiame
Estávamos no início do ano de 1961. No dia aprazado, arrumadas as parcas provisões que se resumem na tradicional ração de reserva (kikwanga e kitaba), dois cobertores e mais alguns farrapos, entenda-se, camisas e calções de tecido cru de saco de farinha de trigo, partimos.
Para a nossa viagem ao Nsingu, coube-me um pequeno embrulho com os nossos farrapos. Na verdade, o embrulho não deveria pesar mais de cinco quilos. Portanto, quando me foi dado, esfreguei as mãos de contente, convicto de que faria o percurso com uma perna às costas. As primeiras duas horas foram suportadas amenamente. Mas a medida que o calor do sol se foi adensando, o peso da minha trouxa foi aumentando em idênticas proporções.
Veio imediatamente à memória o aconchego maternal que, por mero desengano, havia trocado com aquela viagem interminável. O primeiro sinal exterior visível manifestado foi a lentidão que comecei a impor à minha marcha e que chamou a atenção do pai.
- Filho, vamos, temos que imprimir passo de homem para aproveitar o tempo e não chegarmos a noite.
Não fosse a distância já percorrida e a dificuldade de reconhecer a rota até a aldeia, seguramente teria regressado, por que muito cedo me apercebi que me tinha metido numa verdadeira aventura. Aí comecei a dar razão a minha mãe que se opusera, veementemente, da minha participação nessa andança. Quando dei conta de mim, as lágrimas de arrependimento se misturavam como suor e nem o meu pai deu conta que eu estava resignado e em pranto silencioso.
Entramos pela via do Nsala Mbongi. O carreiro que fomos utilizando nem sempre se apresentava com a mesma propriedade: ora tinha as bermas capinadas e bem arrumadas e era estimulante caminhar, ora tínhamos que passar por túneis de capim que eram um convite à desistência pelo nível de dificuldades que acrescia à marcha. O contacto directo do capim com o corpo provocava, por vezes, ferimentos minúsculos não visíveis a olho nu mas que em contacto com o suor provocavam alguma irritação e ardor. Assim, a lista de elementos que jogavam o papel de impedientes para uma caminhada equilibrada, ia-se incrementando. Passamos por uma cordilheira que me arrasou completamente. Não bastava o nível acentuado de inclinação, o sol abrasador que a cada passo impunha uma pausa para sobreviver ao calor. Não bastavam os famosos túneis e, de repente, o céu tornou-se escuro como o breu. Começaram a irromper os raios fulminantes e o ribombar de trovões cuja ressonância invadia toda a região. Ao cansaço das minhas pernas salpicadas pelo terreno lamacento e escorregadio juntou-se o pavor pelos raios e trovoadas. Choveu a potes até se fartar mas não deixamos de caminhar até que chegamos a um povoado onde pedimos água para beber.
A tarde parecia eterna num caminho tormentoso e desconhecido. Todavia, o destino ainda não se anunciava próximo, por isso, sem mais delongas, retomamos a jornada, refeitos do cansaço e da fome. Era uma viagem cujo destino se ia desenhando cada vez mais incógnito, confuso e aterrador.
Volvido algum tempo, o cantar dos pássaros, prenúncio do recolher dos mesmos para os ninhos e preparação para a noitada, a luz crepuscular dando lugar a noite, a longa passagem por uma galeria, dentro de uma mata do tipo equatorial, com vegetação grossa e opaca a destilar ainda gotículas da água da chuva, recentemente terminada, muitos focos de fumaça no horizonte, palmeiras e safueiros com copas frondosas, cães a soltar os seus latidos e homens saindo das lavras, este foi o cenário que nos abriu a perspectiva de que a aldeia, nosso destino, estava finalmente, ao nosso alcance. Se o avizinhar da aldeia me suavizou os ânimos, a hora da saída dos homens, mulheres e até crianças das lavras criou-me, uma preocupação, antevendo a longevidade da jornada laboral que as minhas futuras funções me reservavam.
Finalmente, chegamos sãos e salvos e recebidos com alguma pompa. Depois das habituais cerimónias do “Nkuwo”, vale dizer, boas vindas, serviram-nos ginguba torrada com banana pão assada, água e malavo. Suponho que seria um daqueles agridoces que fazem o deleite de qualquer bom apreciador. Pelos gestos de aprovação do meu velho, deduzi, sem sombra de dúvidas, que se tratava de um produto de fina flor.
Todos os arrepios de pavor que vinha alimentando no meu subconsciente, rapidamente se desvaneceram tal era o requinte da recepção que nos fora reservada. Não me esqueço da fubada rija com carne de javali. Instantaneamente esqueci-me das contrariedades aturadas ao longo de quase doze horas de viagem num percurso verdadeiramente sinuoso.
Não havia tempo a perder e mal terminamos “a gala” do nosso jantar, foram-nos transmitidas as regras e procedimentos para os dias vindouros. Esses conselhos úteis, porém, não foram acatados com os cuidados que se impunham porque logo que dei por terminada a degustação do saboroso prato da noite, o cansaço tomou conta de mim fazendo hibernar todas as minhas funções vitais do organismo e não mais esperei que me mostrassem o lugar para me colocar ao comprido. Parecia feito de cimento armado. Fiquei inanimado tendo dado conta de mim, dia seguinte, quando meu pai me acordou.
Não tive problemas para compreender a dimensão e o alcance da ordem para acordar o que aliás era o objectivo número um que nos levara até aquelas paragens. Levantei-me logo e saí fora de casa para me aperceber bem como era o formato geral da aldeia, uma vez que, na véspera, quando entramos nela já era noite sem a possibilidade de visualizar os reais contornos arquitectónicos das casas, a miudagem da aldeia, enfim, o perfil geral do povoado. A primeira impressão foi a de que se tratava de uma aldeia de grande extensão com casas mais ou menos alinhadas, construídas maioritariamente de pau a pique.
Contavam-se, pelos dedos das mãos, as casas de adobe e cobertas de chapa. Seduziu-me a destreza como alinhavam o capim que servia de cobertura. Em princípio, o capim era escolhido meticulosamente, cortado e posto a secar. Mais tarde, transportado para aldeia para a arrumação cuidada, depois de dividido e atado em pequenos molhos. As pontas da base de cada molho eram cortadas com rigor milimétrico. No final, atiravam-se os molhos para o artista no tecto e que os colocava em degraus. Como em qualquer obra de cultura, havia depois um certo despique para demonstrar as qualidades artísticas de cada um. Eram verdadeiras obras de arte. Mesmo naquele clima em que chovia amiúde e copiosamente, as casas não deixavam transpirar sequer uma gota de água.
As crianças, ainda a suspirar com o frio do amanhecer, não conseguiam esconder a sua curiosidade perante os visitantes, quiçá novos inquilinos. Tentei, sem sucesso, recriar a manhã, à maneira cândida da minha aldeia, com as trocas cúmplices de olhares entre os meus futuros amiguinhos, questionando o tipo de brincadeiras para o dia. Mas mal terminei a formulação do pensamento para materializá-lo no meu linguajar com sotaque que identificaria imediatamente a minha origem, o meu tio desviou-me da rota, convocando-me para o pequeno-almoço que, quase sempre, era composto de ginguba e mandioca cozida acompanhadas de uns bons púcaros de café.
Muito cedo me apercebi que, doravante, levaria uma vida de autêntico soldado com as folgas devidamente programadas. Não havia espaço para brincadeira. Os adultos estavam-se marimbando para o facto de que a actividade reitora para uma criança não é o trabalho. Tinha que me render aos feitiços dos novos hábitos. Agora, depois dos estudos que fiz, é que entendo, a preocupação dos nossos velhos na época. Eles davam uma importância capital à teoria da aprendizagem por imitação e observação, como mecanismo poderoso de socialização. A criança vê um adulto a capinar e tenta reproduzir o mesmo acto. Esses padrões imitativos introduziram-nos, muito cedo, nos costumes adultos, na forma de ser e estar da cultura tradicional de cada região.
Acatei prontamente ao convite. Mais do que um convite era uma ordem. Estava claro como a água pura cristalina que não havia espaço para brincadeiras. O ambiente era de uma disciplina férrea. Terminado o pequeno-almoço, deram-me a escolher uma catana mais condizente com o meu estatuto de principiante naquelas hostes e desqualificado no mister. O estado de ansiedade era natural e num grupo de cerca de cinco pessoas dirigimo-nos ao mato. Descemos por uma colina escarpada até junto das margens do rio Nguizi. As águas eram cristalinas, o leito majestoso com cerca de dez metros de largura e uma correnteza desafiante e apavorante.
Fiquei assediado pelo medo porque não fazia a mínima ideia de como seria capaz de transpor aquela massa de água tão possante. Mas o panorama era lindo, o rio cheio de cascalho branco com margens bem tratadas. Era o local onde os homens tomavam banho. Lá encontramos miudinhos da minha idade a nadar com uma técnica e habilidade esplêndidas e que me provocaram um sentimento de inveja pela audácia e sensação de prazer que testemunhavam. Convenci-me que tinha muito que aprender e sofri a primeira náusea de inferioridade.
Não foi difícil para o meu tio se aperceber que a minha mente navegava por mares cavernosos e que inspirava algum apoio da sua parte. Sem que pedisse, meteu-me no seu vigoroso ombro, qual S. Cristóvão, barqueiro de Deus, e assim atravessamos o rio. A questão de atravessar o rio estava resolvida mas criara outro problema: a minha auto-estima estava beliscada. Como seria encarado por aqueles petizes nas horas de lazer, na aldeia?
Prosseguimos a marcha e, quinze minutos depois, chegamos ao sítio. Eu e o meu irmão mais um primo ficamos num local onde deveríamos ser sujeitos a uma breve sessão de treinamento das técnicas de capinar, isto é, do posicionamento da catana, dependendo do objectivo.
Quando, por exemplo, o objectivo é capinar rente ao chão, como é o caso dos cafezais onde é necessário fazer colheita e tornar visível qualquer grão de café que eventualmente caia ao chão, a técnica é uma. Se, entretanto, o objectivo é simplesmente desbravar, o procedimento é outro. Para cortar capim para cobrir uma casa também se adopta forma própria que permite o corte e a recolha do capim sem amarfanhá-lo. Depois de sucessivos ensaios captamos o essencial das técnicas de capina. Estava aprovado e apto para o dia seguinte em que as coisas seriam já a doer, isto é, cada um com a sua bitola diária. Após essa sessão de treinamento, seguiu-se outra, muito importante para a sobrevivência: fazer armadilhas para caçar ratos, pássaros e outros animais de pequeno porte. Depois preparamo-nos para o regresso à sanzala.
Eu mantive, ao longo da jornada, uma agonia no peito que não me dava tréguas, por causa da imagem, sempre presente, da correnteza do rio. Chegados ao rio, foi a vez do banho. A frescura da água, era tão aliciante e benfazeja que de repente comecei a receber os primeiros sinais de audácia em detrimento dos alarmes doentios que me fustigaram o dia todo. Alvoroçaram-se-me as energias adormecidas e como que renascidas das cinzas com uma vitalidade tonificada, lá fui eu vencendo a correnteza do rio e, quando dei conta de mim, estava na outra margem do rio. Foi uma batalha ganha das muitas que tinha de transpor ao longo da minha estadia no Nsingu.
No ócio reparador das gentes daquela pacata sanzala, a ingestão do malavo a sombra de uma frondosa borracheira ou num jango era a delícia dos mais velhos, após o cansaço do dia de trabalho. O jango era também o lugar favorito para gizar questões de importância capital para a vida da aldeia e colher pontos de vista sobre os mais variados problemas. Geralmente, as crianças não participavam dessas conversas, salvo alguns adolescentes que aí se colocavam à guisa de aprenderem a expressar-se correctamente em cada momento e circunstância, com o uso da filosofia e retórica bantu.
As conversas normalmente terminavam com os convites que os miúdos formulavam para que os pais regressassem a casa para o jantar. Em circunstâncias especiais, os mesmos pais requisitavam a comida para o jango onde se fazia a partilha, num verdadeiro jantar de família, a maneira africana.