
Há 50 anos o regime de Oliveira Salazar viveu um annus horribilis. Efectivamente, o Estado Novo viu-se confrontado, em 1961, com inúmeros dissabores que lhe dificultaram a vida, a pontos de parecer que não conseguiria sobreviver. Em 21 de Janeiro, iniciou-se em La Guaira, Curaçao, no mar das Caraíbas, a «operação Dulcineia», ou seja, o assalto ao paquete «Santa Maria», com 350 tripulantes e mais de mil passageiros.
A «operação Dulcineia», levada a cabo, a partir do dia 22, por um comando de doze portugueses e onze espanhóis do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), traumatizou profundamente o regime português e revelou falta de vigilância da PIDE.
*Investigadora, historiadora especialista no Estado Novo. Prémio Pessoa 2008, Prémio Seeds of Science, Ciências Sociais e Humanas, em 2009

Outra derrota do regime seria, já no final de 1961, em 4 de Dezembro, a evasão de um grupo de dirigentes comunistas da cadeia de Caxias, utilizando o automóvel blindado de Salazar. Ainda o governo português não tinha respirado de alívio que, no dia 18 de Dezembro, a União Indiana ocupou Goa, Damão e Diu, quase sem resistência, embora Salazar tivesse dado ordens para que esta se fizesse até ao último homem.

Movimentos de libertação angolanos
Mas o grande acontecimento nesse ano de 1961 foi sem dúvida o início da guerra colonial em Angola, que duraria até 1974, motivando aliás o golpe militar que em 25 de Abril de 1974 derrubaria o regime ditatorial de Marcelo Caetano. Lembre-se que a guerra colonial - ou as guerras coloniais – em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique se enraizaram no distante ano de 1955, quando ocorreu, em Bandung, na Indonésia, a importante conferência anti-colonialista que fundou o Movimento dos Não-Alinhados. Na sequência deste acontecimento, suceder-se-iam no continente africano, até 1968, 34 novos Estados independentes, subsistindo apenas a Rodésia, o Sahara Espanhol, o Sudoeste Africano e os territórios coloniais de Portugal.
O embrião do movimento independentista de Angola tinha nascido, tal como os de Moçambique e da Guiné-Bissau, em torno de jovens estudantes e intelectuais africanos, que se reuniam na Casa dos Estudantes do Império (CEI), criada pelo próprio regime, em 1944. Além do CEI, havia ainda o Clube Marítimo (CM), localizado no bairro lisboeta da Graça, onde se reuniam marinheiros africanos que trabalhavam nas companhias de navegação, a Casa de África e o Centro de Estudos Africanos (CEA). A funcionar, desde 1951, na residência da família Espírito Santo, de São Tomé, a CEA contou, entre os seus fundadores, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Mário de Andrade, Aquino de Bragança, Lúcio Lara, Vasco Cabral e Noémia de Sousa.

Entretanto, em 1954, tinha sido ainda formado, no Congo belga, a União dos Povos do Norte de Angola (UPNA) que daria origem à União dos Povos de Angola (UPA). Dois anos depois, foi criado, com raiz na etnia Bacongo, o movimento Aliança do Povo Zombo, que, em 1962, mudaria o nome para Partido Democrático de Angola (PDA). Este movimento e a UPA unir-se-iam, neste ano, dando, por seu turno, origem à Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA).
Sem data de criação certa, segundo alguns estudiosos, o MPLA teria sido formado, em Tunes, em 1960, depois de um lento processo de organização, mas nesse ano esse movimento ficou quase sem quadros, devido às prisões que decorreram em Luanda entre Março de 1959 e Junho do ano seguinte, que daria origem ao chamado "Processo dos 50", Neste, foram incriminados 57 nacionalistas angolanos, entre os quais 20 pertenciam ao MPLA, nomeadamente Agostinho Neto e o padre Joaquim Pinto de Andrade. Este era irmão de Mário de Andrade, que ficou a presidir ao MPLA, tendo Viriato da Cruz como secretário-geral. A direcção do movimento foi transferido de Luanda para Conacri. Em 13 de Junho de 1960, o MPLA sugeriu a abertura de negociações para se encontrar uma solução pacífica para o problema colonial.

Diga-se que ainda em 1960, Portugal averbaria uma vitória diplomática com o reconhecimento por parte do Tribunal Internacional de Haia da soberania portuguesa sobre os territórios de Dadrá e Nagar Aveli, ocupados pela União Indiana em 1954. Por outro lado, para lutar contra o isolamento internacional, nesse mesmo ano, Portugal entrara na Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA) e aderia ao Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), bem como ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas, em 15 de Dezembro de 1960, a Assembleia-Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução 1542 (XV), relativa aos territórios portugueses, considerados não autónomos, declarando a obrigação de Portugal prestar sobre eles as informações decorrentes do capítulo XI da Carta.

O 4 de Fevereiro em Luanda e os acontecimentos de Março nos Dembos
No dia 4 de Fevereiro, a chama da independência chegou a Luanda, através de várias acções contra o colonialismo português levados a cabo por nacionalistas angolanos. Diversos grupos tentaram atacar diversas cadeias, onde se encontravam presos nacionalistas angolanos - a cadeia da PIDE no bairro de S. Paulo, a cadeia da 7ª esquadra da PSP, a Casa de Reclusão Militar -, bem como procuraram ocupar a «Emissora Oficial de Angola», a Companhia Indígena e a Estação dos Correios. Nos confrontos, morreram quarenta assaltantes, seis polícias e um cabo do exército abatido junto da Casa da Reclusão.

Em 15 de Março, ainda em Angola, a partir da fronteira e da região dos Dembos, membros das tribos Bacongo iniciaram uma insurreição que alastrou aos distritos de Luanda, Cuanza-norte, Malange, Uíge e Zaire, na qual foram chacinados cerca de 800 colonos brancos, bem como perto de 6.000 negros que para eles trabalhavam. O violento ataque da UPA teria sido planeado para coincidir com a discussão em Nova Iorque de uma moção na ONU, contra o colonialismo português, apresentada pela Libéria, apoiada pelos EUA. Os acontecimentos relatados pela imprensa nacional e internacional causaram profunda emoção na «opinião pública» portuguesa, sendo atribuída a responsabilidade dessas acções à UPA, de Holden Roberto.
A revolta estendeu-se para sul, leste e oeste, sem quase se confrontar resposta das autoridades portuguesas foi escassa, devido ao facto de só haver então, em Angola, pouco mais de 1.500 vindos da metrópole, e 5. 000 africanos recrutados em Luanda e no Negage. Milhares de africanos do norte de Angola que não aderiram ao movimento da UPA fugiram para o ex-Congo belga e o ex-Congo francês, enquanto os colonos brancos constituíram milícias - a «Vanguarda Salazar», os «Viriatos» ou até os «voluntários de Moçambique», dirigidos por Jorge Jardim -, tão violentas na contra-ofensiva como haviam sido os elementos da UPA.
Começa a guerra colonial

Salazar, por seu turno, proferiu então, na Assembleia Nacional, uma importante alocução em que justificou a tomada da pasta da Defesa Nacional, afirmando que «andar rapidamente e em força» para Angola, era o objectivo que iria pôr à prova a capacidade de decisão do governo português. O certo é que, em 18 de Abril de 1961, o DN noticiou a partida, de Leixões e Lisboa, de dois paquetes com tropas, nomeadamente com pára-quedistas, para Angola. No final desse ano, o número de militares nessa colónia já totalizavam 37.477, incluindo 5.000 soldados africanos. Em 9 de Junho de 1961, o Conselho de Segurança da ONU voltou a exortar Portugal a encontrar uma solução pacífica para o problema colonial, de acordo com aquelas resoluções», abandonando o representante de Portugal a sala das sessões da Assembleia-Geral dessa organização internacional.
Na Assembleia Nacional portuguesa, reunida extraordinariamente, em 30 de Junho de 1961, Salazar desafiou a política anticolonial da administração Kennedy. Contando com o apoio de aliados da NATO, entre os quais dos franceses, esta reacção portuguesa acabaria por levar Washington, onde os dirigentes estavam divididos, a recuar na sua posição, em particular após a falhada tentativa de golpe de estado palaciano de Júlio Botelho Moniz. Lembre-se também que o combate diplomático contra os EUA passava, por outro lado, por recordar a Washington que o prazo para a concessão de facilidades às Forças Armadas norte-americanas nos Açores terminaria no final desse ano.

Como se sabe, a guerra alastraria, em 1963 e 1964 à Guiné-Bissau e a Moçambique, onde o PAICG e a Frelimo encabeçaram a guerrilha contra as tropas portuguesas. Ao chegar-se a 1974, já havia treze anos que durava a guerra em Angola, onze anos na Guiné e dez em Moçambique, sorvendo quase 10% da população portuguesa e mais de 90% da juventude masculina, obrigada ao serviço militar de dois a quatro anos, dois dos quais nessas colónias. Segundo dados do Estado-Maior-General das Forças Armadas, morreram, de várias causas, 8.831 militares portugueses, dos quais 4.027 militares em combate, que representavam, respectivamente 23% e 77% dos soldados recrutados localmente e na metrópole. Das quase nove mil baixas, que representaram 1 % do número total de combatentes nos três teatros de guerra, 3.455 ocorreram em Angola, 3.136 em Moçambique e 2.240 na Guiné.

A quase totalidade dos mortos - ou seja, 8.290 -, pertenciam ao Exército, 346 eram elementos da Força Aérea e 195, da Marinha de Guerra. Ao número de combatentes mortos, deve-se acrescentar as vítimas mortais de civis brancos e negros, tanto entre os guerrilheiros como entre a população. Mais de mil civis portugueses foram mortos, mais de metade dos quais nos massacres perpetrados pela UPA, em 1961, em Angola, enquanto o número mínimo de mortos africanos terá totalizado os cem mil. Por outro lado, as guerras coloniais provocaram ferimentos e deficiências físicas em cerca de vinte mil militares portugueses, dos quais 5.120 com grau superior a 60 por cento. Entre os africanos, não existe contabilização, mas pode-se aventar a hipótese quase certa de que o número foi muito superior.
Via cienciahoje.pi